Certo dia, naquilo que seria mais uma operação policial na Vila Cruzeiro, no Complexo de Favelas do Alemão, me aconteceu algo que me marcou pra sempre.Vamos do início.
Trabalhava no 16º Batalhão, em Olaria, um dos locais mais inóspitos desse Rio de Janeiro; favelas para todos os lados e bandidos armados até os dentes, porém havia a tônica de combate ao narcotráfico nas suas conflagradas áreas, ou seja, temos que subir os morros para prender os marginais da lei, entretanto isso não era uma missão fácil, afinal não bastaria gritar: ‘’- Mãos ao alto!’’ e todos se renderiam e entregariam suas armas. E como eles tem armas...
Quase que diariamente eram realizadas incursões nesses locais devidamente planejadas com o intuito de verificar alguma informação processada pelo serviço de inteligência, sendo que essas incursões eram verdadeiras guerras entre nós policiais e traficantes com muitos fuzis. Chegado um dado acerca de que havia uma tonelada de maconha em uma determinada localidade da Vila Cruzeiro, o Comandante me chama e fala que eu comandaria a operação policial a ser realizada (nessa época eu ainda era Capitão). Diante disso reuni o efetivo que incursionaria e fiz uma palestra com os mesmos, falando dos objetivos que pretendíamos, onde iríamos e outros pormenores, para que nada desse errado, afinal era um local de alta periculosidade.
Todos embarcados no veículo blindado (Caveirão) e rumo ao Cruzeiro. Logo de cara a ‘’trinta’’ cantou (referencia a metralhadora antiaeréa) e como sempre, mais uma vez, novamente, de novo o mundo desabou em bala. Porém já estávamos acostumados de tal forma que nos parecia apenas mais um dia de trabalho. O RJTV dirá mais tarde: ‘’- Tarde de pânico na Vila Cruzeiro’’, mas essa violenta rotina nos endureceu.
É chegada a hora de ir ao objetivo, tínhamos de ser rápidos para evitar que eles ocupassem as melhores posições, pois teriamos muito trabalho para transportar para fora do morro uma quantidade tão grande de drogas. Rua ‘A’, é neguinho, ali a bala voa. O caveirão seguindo implacável, lento, mas firme. A galera da ‘trinta’ mandando ver, os meninos do AK (Fuzil AK 47) mandando aço e o nosso consequente revide. Aí já viu né? É transformador arrebentado, carros todos furados, correria, enfim, um inferno em plena Penha.
Depois de muito custo tomamos as posições necessárias para a segurança dos que incursionariam mais a fundo na caça da droga e graças a Deus estávamos todos bem. Desce a escadaria enorme, procura, fuça aqui, fuça ali até que alguém grita : ‘’-Bringo!!” e estava localizada a droga. A felicidade do achado é rapidamente ofuscada pelo desânimo, afinal seria muito dificil transportar tanta droga com a bala voando. Mentalmente cita-se o saudosíssimo Drummond de Andrade: “ e agora José?” (o poeta deve ter dado um duplo twist carpado em seu túmulo. Que hora para recitá-lo!). Seria árduo, porém cada segundo que permanecessemos ali, mais ficaria perigoso. Escadaria acima, peso nas costas e bala voando. Temos que retornar ao caveirão. Nesse percurso havia um cruzamento de becos que seria uma dificuldade, pois não havia posicionamento seguro para atravessar, somando-se a isso o peso nas costas e não tem essa de Capitão nessas horas, todos com um fardo daquele para sairmos dali o mais rápido possível e em segurança. Na terceira ou quarta viagem aconteceu o inesperado; os marginais chegaram bem próximos de nós no citado cruzamento e aí viramos alvos fáceis. Nos abrigamos e iniciou-se um tiroteio muito intenso e no meio disso tudo, próximo a nós polciais, havia uma criança; e os bandidos nem aí, estavam mandando bala e agora digo a razão desse artigo que escrevo! O olhar daquela criança. É meus amigos, não sei como nem por que, porém no meio do tiroteio fixei-me na imagem daquela criança. Um menino devia ter uns cinco anos, sararázinho dos olhos claros, sabem como é? Aquele olhar calmo, sereno no meio daquele inferno me contagiou de uma forma que me desconcentrei. Parecia que ele não entendia o que se passava ali e nesses poucos minutos pensava como uma criatura de Deus, tão bela e inocente estava vivendo naquele inferno. Pensei nos meus três filhos, na minha esposa, pensei que toda hora mando eles colocarem o chinelo para não pegarem um resfriado e o pequeno sarará corria o perigo de tiros calibre 7,62. Caramba aquilo me deu uma angústia, uma agonia e engoli seco, como nunca tinha feito na minha vida. Me senti impotente e me perguntava o que eu estava fazendo ali, por que atirava naqueles homens e por que eles atiravam em mim. Dava vontade de levantar e gritar: ‘’-Para essa porra toda!”, mas aí um pedaço de reboco de parede oriundo de um tiro que pegou bem pertinho me trouxe de volta à realidade; uma pessoa puxou o garoto para dentro de casa, troquei o carregador e atirei neles (‘’de com força’’ rsrs). Conseguimos repelir a investida dos bandidos, saimos da Vila Cruzeiro apreendendo quase uma tonelada de machonha, fomos elogiados, condecorados, mas até hoje aquele olhar está na minha cabeça. Onde está aquele garoto sarará? O que terá acontecido com ele? Será que hoje ele é do bem ou do mal? Será que ele teve as mesmas oportunidades que os meus filhos de estudar, ser bem criado etc? Dou tres tragadas em meu cigarro apagado e me calo sem resposta.